"Eu não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie de animal. O que observei neles, no
tempo em que estive na redação do O Globo, foi o bastante para não os amar, nem os imitar. São em
geral de uma lastimável limitação de ideias, cheios de fórmulas, de receitas, só capazes de colher
fatos detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às ideias vencedoras, e
antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo e guiados por conceitos obsoletos e um pueril
e errôneo critério de beleza. Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois
quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com
a linguagem acessível a ele. É esse o meu propósito, o meu único propósito. Não nego que para
isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance
das mãos, tenho os autores que mais amo. (...) Confesso que os leio, que os estudo, que procuro
descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. Mas não é a ambição literária que me
move ao procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações.
Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo,
a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como
eu e com os desejos que tinha há dez anos passados. Tento mostrar que são legítimos e, se não
merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença.
Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais de
qualquer ordem. Cercam-me dois ou três bacharéis idiotas e um médico mezinheiro, repletos
de orgulho de suas cartas que sabe Deus como tiraram. (...) Entretanto, se eu amanhã lhes fosse
falar neste livro - que espanto! que sarcasmo! que crítica desanimadora não fariam. Depois que
se foi o doutor Graciliano, excepcionalmente simples e esquecido de sua carta apergaminhada,
nada digo das minhas leituras, não falo das minhas lucubrações intelectuais a ninguém, e minha
mulher, quando me demoro escrevendo pela noite afora, grita-me do quarto:
- Vem dormir, Isaías! Deixa esse relatório para amanhã!
De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as
destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento.
Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em
que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos
modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela,
unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na
coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando todos em casa se
vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto
capítulo e ainda não me preocupei em fazê-la pública, anunciar e arranjar um bom recebimento
dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também,
amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não
pude nem soube dizer.
(...) Imagino como um escritor hábil não saberia dizer o que eu senti lá dentro. Eu que sofri
e pensei não o sei narrar. Já por duas vezes, tentei escrever; mas, relendo a página, achei-a
incolor, comum, e, sobretudo, pouco expressiva do que eu de fato tinha sentido. "
LIMA BARRETO
Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.
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