25 abril, 2012
Deixa eu te cuidar
Faz assim, olha, deixa eu cuidar de você
deixa eu te mandar fazer a lição, sair do computador
ir pra cama cedo, trocar a roupa molhada
eu não peço muito, só me deixe cuidar de você
querer-te bem imensamente,
querer-te perto a toda hora
querer-te pra mim nem exijo, mas deixa eu cuidar de você!
Deixa eu afagar teus cabelos finos, acariciar seus ombros que carregam todo esse peso,
e dizer que é questão de tempo,
dizer que tudo passa, e que já já amanhece novamente
te dizer que tem um lugar especial, um telhado secreto onde as estrelas ficam mais perto,
te avisar quando for lua cheia pra que possas olhar,
e nem precisa pensar em mim...
Mas deixa eu cuidar de você, nem que de longe
deixa, vai, deixa eu cuidar de ti
não preciso te tocar, não preciso te sentir,
mas deixa eu te olhar, deixa eu te ver passar
Esse peso nas suas costas eu divido com você
mas me deixa te cuidar, me faz bem
porque quando te cuido, me cuido
ainda que não saiba, me cuido.
Me cuido porque te cuido, e se te faz bem, me faz bem
ainda que não tenha cogitado, tu me faz bem
te cuidar é me cuidar
te ter, é me ganhar
Deixa eu te cuidar, menino, prometo não fazer-te mal
cuidar de você é cuidar de mim
te alimentar, te conter, te amar, assim mesmo, de longe,
te proteger desse mundo imundo que coexiste lá fora, onde essa tua alma é bonita demais para existir
deixa eu proteger tua inocência, teu amor, tua pureza, teu eu
não peço nada em troca, nem precisa cuidar de mim
porque quando cuido de ti, cuido de mim
e quando afago teus cabelos claros e rebeldes, por mim, o mundo poderia acabar ali.
A morte seria bonita, com você em meu colo, ou ao alcance de meu olhar protetor
mas deixa eu te cuidar, menino, deixa eu cuidar do meu amor
17 abril, 2012
Entre aspas: Pálpebras de Neblina
"Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/que era sofrer?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?"
Caio Fernando de Abreu
14 abril, 2012
"A boca fala do que o coração está cheio"
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